No rescaldo dos motins, o Brasil enfrenta o desafio de combater a radicalização online

O mundo assistiu incrédulo neste mês ativistas de extrema-direita destruindo grandes prédios do governo e ameaçando atacar infraestruturas importantes, incluindo estradas e aeroportos no Brasil. Agora, à medida que crescem as preocupações com a possibilidade de novos distúrbios ocorrerem nos próximos dias, a nova administração do país enfrenta o desafio significativo de conter o aumento contínuo da radicalização estimulada pelas mídias sociais.

Sob o que é considerada a mais grave ameaça à democracia desde que o Brasil ressurgiu de uma ditadura em 1985, milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram locais como o Congresso e o gabinete presidencial no domingo, deixando para trás um rastro de destruição. O motivo foi o resultado das eleições de outubro vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva, tornando Bolsonaro o único presidente brasileiro a fracassar em uma tentativa de reeleição. Enquanto dezenas de manifestantes eram presos, o ex-chefe de Estado, que fugiu para a Flórida antes de Lula assumir o cargo, adotou uma postura ambígua.

Por mais chocantes que esses eventos possam ser, eles não são necessariamente uma surpresa. Segundo especialistas, os tumultos em Brasília e na maior economia da América Latina foram resultado de um processo que já dura quase uma década. À medida que acontecimentos como a crise econômica e o impeachment de Dilma Rousseff em 2013 ocorreram, sentimentos anti-esquerda surgiram junto com a crescente insatisfação com o status quo, e os manifestantes foram às ruas entre 2015 e 2016.

Dado que o Brasil estava em apuros econômicos, com crescente desigualdade, violência desenfreada e corrupção, todas as condições estavam reunidas para facilitar a ascensão da extrema-direita. Nesse contexto, as redes sociais se tornaram o principal veículo de radicalização política no Brasil, disse Guilherme Casarões, professor de Ciência Política da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV/EAESP) e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais ( CEBRI).

“Depois de 2016, vários segmentos da direita começaram a surgir – os evangélicos, os libertários, os extremistas – mas não se falavam. Bolsonaro foi muito eficiente em dar esse sentimento de unidade, o que só aconteceu porque ele foi o primeiro político do Brasil a dominar a linguagem digital contemporânea”, disse.

“Bolsonaro só chegou até aqui porque conseguiu reunir vários interesses da direita: apesar de estar falando de Deus e da liberdade econômica, o cerne de sua retórica é anti-establishment, racista, homofóbico, autoritário. Os setores moderados da direita passaram então a tolerar suas ideias antidemocráticas e a se radicalizar por meio de narrativas digitais mais emotivas e menos racionais”, acrescentou Casarões.

Além de aspectos como a crescente eficiência de Bolsonaro em mobilizar o público online e sua cruzada para desacreditar a grande imprensa, outro fator que explica a adesão de tantos brasileiros à retórica antidemocrática online é a crescente inclusão digital do país, segundo Ronaldo Lemos, um advogado, professor da Columbia University e diretor do Institute for Technology and Society (ITS). “Além da sofisticação desse tipo de campanha inflamatória, há o fato de mais pessoas estarem online, o que amplia o alcance desse tipo de campanha e a torna mais eficaz”, disse.

Com quase 12 milhões de seguidores no Twitter, Bolsonaro comanda a narrativa em uma infinidade de grupos em ferramentas como WhatsApp e Telegram e usa frequentemente o YouTube e o Facebook para manter contato com os apoiadores. Isso levou à sua vitória em 2018, apesar das acusações de táticas de campanha ilegais usando o WhatsApp. Em comparação, Lula só ganhou um smartphone no ano passado: o chefe de Estado prefere as interações cara a cara e delega a atividade de mídia social à primeira-dama, Janja, e sua equipe de comunicação.

Soprando o apito do cachorro

As revoltas do dia 8 de janeiro no Brasil são cercadas de simbolismo, a começar pela data escolhida pelos orquestradores. Afinal, foi em 9 de janeiro de 1822 que o infante D. Pedro, então regente do Brasil, recusou-se a obedecer a uma ordem de retorno a Portugal. O dia ficou conhecido como o Dia do Fico, pela declaração de Pedro: “Vou ficar”.

Dado que a violência não aumentou imediatamente após o resultado da eleição, entregue rapidamente graças ao sistema de votação eletrônica do Brasil, ou mesmo com a posse de Lula em 1º de janeiro, pode-se perguntar: por que os apoiadores de Bolsonaro demoraram tanto? Segundo Casarões, também houve um processo envolvido. Primeiro, os motoristas de caminhão bloquearam as estradas, um movimento que mais tarde se deslocou para grandes acampamentos de torcedores, muitas vezes em frente a prédios militares em todo o país. Enquanto isso, Bolsonaro permaneceu em silêncio em seus canais de mídia social.

“O silêncio de Bolsonaro foi interpretado por seus apoiadores como uma autorização para permanecer [nos acampamentos], mas ele não quis ser associado a nenhum tipo de violência para evitar acusações. Ele então deixou o Brasil sob o argumento de que sua vida estava em perigo, criando efetivamente um álibi que justificaria uma radicalização nas ruas”, disse o estudioso. “Os acontecimentos de 8 de janeiro só aconteceram porque Bolsonaro nunca aceitou abertamente sua derrota.”

Sobre a forma como os ataques foram articulados nas redes sociais, os apoiadores de Bolsonaro empregaram o que é definido por especialistas como uma técnica de “apito de cachorro”. Nesse caso específico, o evento foi definido por uma variação de “Festa na Selva” – que significa “Festa na Selva” em português, um grito de guerra militar – trocando o “v” da palavra selva por um “m. ” A chamada às armas foi então disfarçada como uma discreta “Festa na Selma” – uma festa na casa de Selma.

As redes sociais foram fundamentais para a organização prática dos tumultos, segundo David Nemer, professor da Universidade da Virgínia e pesquisador que se concentra na dinâmica dos partidários da extrema-direita em plataformas como o WhatsApp. “As pessoas enviavam seus dados completos e obtinham informações sobre a rota das caravanas para a festa de Selma, acomodação e outras necessidades. Os organizadores enviariam detalhes dos líderes locais e pediriam pagamentos. Nada foi escondido, tudo foi bastante explícito, e esses grupos são abertos”, afirmou.

As “Tias Zap”

Embora o estereótipo de apoiador de extrema-direita tenda a ser o homem branco de classe média, outro grupo é frequentemente associado à suscetibilidade à desinformação e ao discurso de ódio no Brasil, as “tias zap”. O termo popular descreve os eleitores mais velhos que tendem a receber e divulgar conteúdos ligados à radicalização, predominantemente via WhatsApp e Telegram. Segundo Nemer, esses supostos “cidadãos bem-intencionados” foram arrastados para uma câmara de eco, explicando em parte por que tantos estavam presentes nos distúrbios.

“Eles realmente acreditam que se alistaram em uma missão patriótica, onde têm o dever de salvar o Brasil, e não há nada de errado em suas ações. Mas, quando menos percebem, já estão engajados no terrorismo”, disse Nemer. A pesquisadora acrescenta que isso é resultado de uma trajetória com três etapas: primeiro, as pessoas são expostas a ideias radicalizadas online e depois normalizam. Então, eles se acostumam com o discurso antidemocrático e desumanizam o adversário. “É um processo lento, perigoso e letal”, observou.

No entanto, o estudioso destacou que os manifestantes faziam parte de um pequeno grupo, que tende a diminuir após a derrota de Bolsonaro. As ações em Brasília são principalmente desaprovadas pela maioria dos eleitores: segundo pesquisa da AtlasIntel com 2,200 entrevistados, 75,8% desaprovam as ações protagonizadas pelos manifestantes, ante 18,4% que consideram os motins válidos. Nemer teme que essa minoria se radicalize ainda mais.

Quando se trata de medidas das autoridades para conter a radicalização em curso, Nemer é cético. “Nenhum esforço está sendo feito do ponto de vista do governo. Em vez disso, o [juiz do Supremo Tribunal] Alexandre de Moraes está assumindo uma postura reativa, prendendo as pessoas como uma forma educacional de fazer as pessoas pararem. E antes não havia nada [para impedir a desinformação e o discurso de ódio online] já que o governo anterior estava tentando capitalizar isso”, argumentou.

Abordando a Raiz do Problema

Enquanto instituições brasileiras como o Tribunal Superior Eleitoral agiram para combater notícias falsas nas eleições de 2018, o foco estava principalmente no Facebook, de acordo com Lemos. “O que aconteceu foi que a desinformação começou a circular no WhatsApp e no YouTube, o que virou uma brecha. Com isso, todas as atenções se concentraram em uma única plataforma quando outros canais se tornaram o principal canal para campanhas inflamatórias”, afirmou.

Em 2022, o cenário mudou novamente, com o Telegram despontando como a ferramenta preferida para apoiar a articulação dos apoiadores de Bolsonaro. A ferramenta também desempenhou um papel significativo nos distúrbios da semana passada. Outras plataformas como Gettr e Discord também estão sendo adotadas entre os radicais brasileiros, disse Lemos: “Essa dinâmica está em constante mudança e exige mudanças estratégicas para que [as autoridades] possam entender e agir sobre o assunto”.

Por outro lado, Lemos argumentou que o Brasil evoluiu quanto à sua preparação para lidar com a desinformação nas redes sociais em 2022 em relação ao cenário de 2018. Todas as plataformas, incluindo WhatsApp, YouTube – e mais tarde, Telegram – concordaram em cooperar para lidar com o problema. Houve também uma mudança significativa na estratégia. “Antes de 2022, o modus operandi das autoridades era determinar a remoção de cargos específicos. No ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral começou a investigar de onde vêm as fake news e a entender as formas de financiamento. Essa mudança de foco não resolveu o problema, mas teve um impacto importante”, observou o advogado.

Aprofundar o financiamento das redes de desinformação deve estar entre as prioridades do governo brasileiro, mas outras medidas devem ser tomadas, segundo Nemer. “Não existe bala de prata para isso. É um problema multifacetado e, como tal, requer vários tipos de soluções. Precisamos de regulamentação atualizada sobre radicalização e desinformação online, além de responsabilizar as pessoas e investir na alfabetização midiática”, observou ele, acrescentando que YouTubers brasileiros com grande audiência, como Casimiro e Felipe Neto, podem ajudar a combater a radicalização.

O governo Lula também terá de lidar com o fato de que as tentativas de regular ou impor alguma censura a indivíduos que disseminam conteúdo antidemocrático até agora saíram pela culatra, segundo Casarões. “Qualquer tentativa de impor regras mais duras pode ter o efeito oposto. Portanto, o Judiciário terá que agir com muita cautela e clareza para que a criminalização das fake news não acabe gerando novas ondas de radicalização com base nas premissas equivocadas que os apoiadores de Bolsonaro costumam citar”, disse.

Casarões argumentou que mudar mentalidades é possível, mas é uma tarefa que vai muito além do governo Lula, já que o líder de esquerda também é uma figura profundamente polarizadora no Brasil. “A pacificação do país só virá depois de muitos ciclos eleitorais e de toda uma geração”, afirmou.

“Nos últimos anos, vimos a construção de duas realidades quase paralelas e antagônicas, uma delas criada por pessoas que se informam pelo WhatsApp para quem os fatos pouco importam. O movimento pela reconciliação nacional acontecerá após um processo em que o Brasil terá que operar sob as mesmas premissas sobre a realidade. Mas isso não vai acontecer da noite para o dia”, concluiu.

Fonte: https://www.forbes.com/sites/angelicamarideoliveira/2023/01/13/in-the-aftermath-of-riots-brazil-faces-the-challenge-of-countering-online-radicalization/