O vento ruim da FTX atingirá o Sul Global? Talvez não

Com o mundo das criptomoedas ainda se recuperando do colapso do FTX, o Brasil recentemente passou legislação que legalizou o uso de criptomoedas para pagamentos no país. Como conciliar isso com todas aquelas declarações no Ocidente de que a criptomoeda está tendo seu “Momento Lehman"? 

O Brasil pode ter revelado inadvertidamente uma divisão entre o mundo desenvolvido e os mercados emergentes no que diz respeito aos usos e abusos de criptomoedas. (A legislação ainda requer uma assinatura presidencial antes de se tornar lei.)

Inquestionavelmente, o pedido de falência da FTX em 11 de novembro prejudicou as exchanges de criptomoedas e outras empresas focadas em criptomoedas no Brasil, bem como muitas empresas baseadas em criptomoedas em toda a América Latina (LATAM). Mas este último vendaval no inverno cripto geralmente não é visto como uma ameaça existencial - como às vezes é retratado na mídia ocidental.

“[A implosão da FTX] certamente foi negativa em todos os lugares”, disse Omid Malekan, autor e professor adjunto da Columbia Business School, ao Cointelegraph. “Mas o quanto as pessoas são dissuadidas é uma função de terem acesso a moedas estáveis ​​ou produtos de pagamento confiáveis”.

Muitas empresas na América do Sul sentiram a dor do inverno cripto, disse David Tawil, presidente da ProChain Capital, ao Cointelegraph. Houve uma desaceleração na atividade comercial, demissões e um declínio nos investimentos de capital de risco. No entanto, os praticantes de criptografia na América do Sul “ainda estão avançando”, disse ele, porque em grande parte da região, “a criptografia é funcional, tem uma utilidade real” de maneiras que não são totalmente compreendidas ou reconhecidas no Ocidente.

Stablecoins como Tether (USDT) e USD Coin (USDC) são muito mais importantes em países como Argentina e Brasil, onde o governo implementou controles de capital que limitam a compra de dólares americanos. No Brasil, por exemplo, "existe apenas uma moeda - o real brasileiro local", disse Thiago César, CEO do Transfero Group, provedor fiat on-ramp, ao Cointelegraph. “Você não pode ter contas em dólares. Você não pode ter contas em euros. Então, nesse contexto, uma stablecoin brasileira é muito importante para os brasileiros.” As stablecoins permitem que os usuários participem de mercados internacionais.

“Ao contrário das economias mais desenvolvidas, onde a cripto é vista como um investimento” e o foco é obter lucros de suas participações, César continuou, “no Brasil, na verdade não é esse o caso”. As vendas de stablecoins como USDT, USDC e o Brazilian Digital Token (BRZ), um token lastreado no real brasileiro, representam cerca de 70% do comércio de criptomoedas do país, observou ele.

Além disso, mesmo com o fracasso da exchange de criptomoedas FTX, “o alcance dessa falha realmente não afetou os usuários de varejo no Brasil”, acrescentou César. Por outro lado, “se a Binance tivesse falhado, teria sido muito problemático no Brasil – porque muitas pessoas negociam na Binance”.

Falando de uma 'posição privilegiada'?

De um modo geral, as criptomoedas desempenham um papel muito maior na LATAM e em outras partes do Sul Global do que nos EUA e no Norte Global, disse Tawil. Os pontos de vista dos EUA e da Europa podem ser “muito míopes” às vezes. É preciso viver ou trabalhar em lugares como a América Latina para apreciar a diferença. “Tem gente que nunca teve conta em banco, agora negocia. A Argentina é principalmente uma sociedade de dinheiro, e ver as pessoas negociando agora em moeda digital é incrível.”

“As pessoas no Ocidente definitivamente falam de uma posição privilegiada quando se trata de cripto”, disse Malekan. Ele inclui entre os “privilegiados” aqueles como Warren Buffet, que argumentam que não há necessidade de criptomoedas porque produtos e serviços bancários tradicionais, como cartões de crédito, funcionam muito bem. “Acho que nunca ocorreu a essas pessoas que uma parte substancial da população global, muitas das quais vivem no Sul Global, não tem acesso a esses serviços”, disse Malekan ao Cointelegraph.

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As lições que estão sendo tiradas do fiasco do FTX são diferentes no Brasil e no Sul Global, então, daquelas que emanam mais ao norte?

Possivelmente, mas varia de país para país, respondeu Malekan. “Lugares que possuem controles de capital ficarão mais preocupados com os provedores de serviços criptográficos que são regulamentados e confiáveis, porque podem se tornar um sistema financeiro alternativo viável. Nos países ocidentais que têm moedas estáveis ​​e nenhum controle de capital, a maior preocupação é fraude, lavagem de dinheiro e evasão de sanções”.

Ainda assim, alguns reguladores ocidentais parecem ter tido seus piores temores confirmados com a queda do FTX. Um diretor-geral do Banco Central Europeu escreveu recentemente, por exemplo, que o Bitcoin (BTC) havia proferido seu “último suspiro antes do caminho para a irrelevância”. No início do ano (após o colapso do Terra), a presidente do BCE, Christine Lagarde Declarado que as criptomoedas “não valem nada”.

“Não podemos subestimar o fato de que a segunda maior bolsa do mundo em termos de volume negociado [cripto] parou de negociar durante a noite”, disse Andrei Manuel, cofundador da Bit2Me, uma bolsa espanhola de criptomoedas. Dito isso, “algumas autoridades financeiras e meios de comunicação de massa estão aproveitando a oportunidade para desacreditar e atacar o Bitcoin e a indústria em geral”. Quanto a Lagarde, ela “pode estar nervosa com o lançamento de seu novo modelo de dinheiro digital, os CBDCs [moedas digitais do banco central], e que esta é uma oportunidade que eles não podem deixar escapar”, disse Manuel ao Cointelegraph.

O que os críticos ocidentais às vezes não conseguem avaliar “é que o colapso do FTX não afetou o funcionamento normal do Bitcoin ou dos criptoativos”, continuou Manuel. “Estes foram afetados em seu preço, devido a uma retirada maciça de liquidez.” Mas os blocos de Bitcoin continuam a ser minerados e os blocos são adicionados ao registro regularmente, sem interrupção. “O Brasil não será a primeira nem a última jurisdição a facilitar o uso do Bitcoin”, previu Manuel.

De qualquer forma, “os reguladores não devem fechar os mecanismos financeiros novos e inovadores, como a cripto”, disse Fernando Furlan, sócio da Furlan Associados Consultoria e ex-presidente da associação de blockchain do Brasil, ao Cointelegraph. “Mas, pelo contrário, devem criar as condições necessárias para a segurança dos investidores.”

Outros acreditam que as lições tiradas do fiasco do FTX podem não ser tão diferentes se alguém regula do Norte Global ou do Sul Global. “É provável que os reguladores estabeleçam regras mais rigorosas para projetos cripto”, disse Eloisa Cadenas, CEO da CryptoFintech do México, ao Cointelegraph. Além disso, se a indústria criptográfica for mantida, “ela terá que ser reinventada e reestruturada, e apenas os projetos que tiverem uma proposta de valor interessante e relevante poderão sobreviver”.

Outros seguirão o exemplo do Brasil?

Também não se deve subestimar o impacto do fim do FTX na América Latina, disse Cadenas. Várias empresas latino-americanas “estão liquidando até 30% de seu talento humano” e outras estão repensando o uso de modelos de negócios, principalmente no México, El Salvador, Argentina e Brasil. Fundos de investimento que alavancaram a liquidez do FTX faliram. “O golpe foi mundial. […] O colapso do FTX não afeta apenas os EUA e a Europa”, disse Cadenas.

Ainda assim, não surpreende Cadenas que, em meio a toda a incerteza atual, o Brasil aprove a legislação que permite o pagamento criptográfico. “Não é surpreendente porque o Brasil é o país com maior adoção de criptoativos.” Um relatório recente do governo constatou que mais de 12,000 empresas brasileiras relatado ativos criptográficos em suas demonstrações financeiras, observou ela, acrescentando:

“Portanto, é algo que mais cedo ou mais tarde aconteceria, e vamos ver isso com mais frequência nas leis de outros países; por exemplo, El Salvador lançou recentemente uma proposta de lei para regular os ativos digitais”.

El Salvador já tem sua conhecida Lei do Bitcoin, é claro, “mas isso não se aplica a outros criptoativos”, acrescentou Cadenas.

Outros seguirão o exemplo do Brasil? “É bem provável”, disse César. “O Brasil se consolidou como líder regional. Portanto, é uma referência, não apenas na regulamentação de criptomoedas, mas também no sistema bancário da região.” Aqui ele estava se referindo ao popular sistema de pagamento instantâneo Pix do Brasil, implementado em 2020, que fez transferências bancárias locais “instantâneo, gratuito e disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana”, acrescentando:

“O Brasil está tentando projetar sua influência em toda a região – não apenas exportando regulamentações criptográficas, mas também exportando seu sistema Pix. Outros países, como a Colômbia, já estão interessados ​​em adotar um sistema de transferência bancária local semelhante ao Pix.”

Se a nova legislação brasileira for sancionada, como esperado, algum tipo de licença emitida pelo governo provavelmente será necessária para conduzir atividades relacionadas à cripto, disse César. O banco central determinará muitos requisitos específicos, como capital mínimo necessário para comprar e vender cripto, experiência mínima dos diretores, etc. A legislação escrita carece de muitos detalhes importantes.

Nem todos podem ser guiados pelo exemplo do Brasil, no entanto. Em 5 de dezembro, os esforços dos legisladores paraguaios para tornar a mineração de Bitcoin uma atividade industrial reconhecida vacilou já que a Câmara dos Deputados do Paraguai não conseguiu derrubar um veto presidencial à iniciativa. O projeto original foi aprovado em julho. Os legisladores podem estar repensando as questões criptográficas à luz do FTX.

'Cripto é muito resiliente'

Em suma, as criptomoedas, e especialmente as stablecoins, serão uma “virada de jogo” para muitas pessoas no Sul Global, especialmente em países como a Argentina, que dificultam muito a compra de dólares, disse Tawil. “Nos Estados Unidos, não há realmente obstáculos para abrir uma conta bancária.” No mundo em desenvolvimento, incluindo grande parte da América Latina e da África, as opções financeiras de uma pessoa costumam ser bastante restritas.

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Os usos das criptomoedas podem ser inumeráveis. Na Argentina, a cripto pode ser usada como um mecanismo para combater a inflação, uma forma de as pessoas acessarem dólares ou apenas um meio de internacionalizar sua riqueza, disse Tawil. No Brasil, pode ser um instrumento de internacionalização da riqueza — ainda que o Brasil não tenha os mesmos problemas de inflação da Argentina. “Mas é basicamente o acesso à liberdade”, acrescentou Tawil.

A FTX ainda pode atrasar a indústria cripto por anos globalmente, na visão de César. Mas “as criptomoedas são muito resilientes, especialmente quando você vê onde elas resolvem problemas reais”.